quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

As Árvores


O ano em que viemos morar neste bairro foi o mesmo em que entrei pra escola. A escola fica bem pertinho de casa por isso no primeiro e no segundo ano, minha mãe, a Jú ou algum outro adulto que estivesse de bobeira na hora me levar ou trazer faziam o trajeto a pé comigo, saindo de casa logo atravessávamos uma avenida grande e movimentada, daí entrávamos em uma rua mágica.
Na primeira quadra tinha umas árvores altas que se distribuíam em fila pelas calçadas, dos dois lados da rua, uma de frente pra outra, eram árvores que podiam atingir o céu, mas não eram muito copadas, a Jú me explicou uma vez que podavam elas de forma que elas ficassem sempre assim, por isso elas jamais tocavam umas nas outras. Elas me davam a impressão de que eu poderia subir a rua se quisesse, não até a próxima quadra, mas até o céu.
Na quadra seguinte as árvores também eram dispostas assim em forma de alameda, mas suas raízes eram tão grandes que rompiam a calçada e elas encontravam-se, suas copas também se encontravam, a rua era mais sombria e úmida por isso, era cheia de pequenos insetos, canto de pássaros, se podia ver terra e pedrinhas próximo as árvores. Pra mim era, muitas vezes, a entrada de uma caverna misteriosa e infinita onde eu poderia desvendar o mundo todos os dias e para sempre, aquela rua me mostrava que ser criança é mágico e eterno.
No terceiro ano eu já podia ir sozinho com a Amanda. Como a vida era mágica!  A garota mais linda, mais incrível, valente e divertida do universo era minha colega e minha vizinha! De mãos dadas, ou trocando cócegas, pisões e empurrões, naquela rua, éramos plenos e éramos senhores do mundo, do céu, das águas, das florestas, das cavernas, das pirâmides, das montanhas, dos temporais e das calmarias...
Ah! As calmarias, quando cansávamos de correr e rodopiar nos jogávamos no chão e o céu girava no infinito enquanto sentimos  umidade da calçada no refrescar, num instante tudo era silencio e calma. Aquele lugar era todo mágico!
No quinto ano de escola as árvores da primeira quadra não foram podadas e também ficaram copadas, nem tanto quanto as da segunda quadra, mas o suficiente para que as copas de um par de árvores que pareciam buscar uma a outra, encontrassem-se, cada uma ficava de um lado diferente da rua, uma de frente para a outra, as últimas antes de entrar na segunda quadra. Eu nunca tinha observado antes que elas, mesmo de longe conversavam, mas agora elas estavam juntas e se beijavam e se abraçavam e sorriam e cantavam e dançavam e qualquer um podia ver isso e parece que todo mundo agora podia perceber a magia daquela rua! Todos que entravam ali, agora, eram também mágicos e tinham vidas mágicas e viviam livres, completos e aventureiros como eu e Amanda.
Este ano, logo que chegou o frio a prefeitura mandou podar as árvores, e este par de árvores não pode mais se abraçar. A rua ficou mais clara e aparentemente mais limpa, melhor, conforme os preceitos estranhos de uma gente que não sabe o que é viver.
Estávamos agora em uma clara e limpa cidade civilizada onde as duas árvores não podiam mais se abraçar.
Um dia ao passar por ali, bem quando atravessei a rua parece que ouvi a árvore da esquerda dizer: hoje um gentil e generoso temporal virá nos visitar...
À noite um temporal que parecia que tentava levar para o céu o que era do céu e tombar na terra o que era da terra veio nos visitar e dançou e cantou por horas sobre a cidade, eu não dormi, era importante ouvi-lo, como se deve ouvir os gênios e os sábios que vem de outros mundos nos visitar.
Na manhã seguinte quando fui pra escola, vi a árvore da esquerda caída por sobre a árvore da direita, apoiada em seus galhos, não sei se riam ou choravam, mas quis abraça-las, no entanto vi que era um momento só delas e me afastei, triste, em estado de luto me afastei.
A prefeitura mandou serras, caminhão, uma máquina com uma espécie de mão de gigante e homens de uniforme para retirarem a árvore. As outras permaneceram ali, de luto permaneceram. Poucos dia depois inexplicavelmente a árvore da direita secou como se tivesse sido incendiada pela própria seiva, como que por um fogo que viesse de algum lugar dentro de dela. Aquela rua era um imenso deserto, em todos os sentidos um deserto e por ali passavam agora tantas pessoas desertas...
Logo quando vi as duas árvores se abraçando e se beijando pela primeira vez entendi de onde brotava a magia daquele lugar, a Amanda também entendeu, mas quem mandou podar aquelas árvores ou já era deserto por dentro ou nunca tinha estado ali. Aquela rua era agora um deserto!
Hoje recebi uma carta da Amanda que há dois anos está com os pais nos Estados Unidos, na carta ela pergunta sobre o nosso lugar mágico, a caverna e as duas árvores que se beijavam e se abraçavam. Ela virá passar o natal e a virada do ano com família, mas antes disso terei que responder a carta...
Hoje não sou alegre nem triste, sou um garoto de quase catorze anos que ao pensar em como dar uma notícia triste a uma garota mágica (se é que ela ainda é mágica), pensa em si e em todos aqueles que ainda terão que descobrir que a vida acontece por caminhos que nem sempre são aqueles que acreditamos ou escolhemos ou amamos...
Apenas o garoto Júlio de quase catorze anos que a poucos anos atrás nesta época do ano estaria escrevendo sua cartinha para o papai Noel e hoje escreve para si mesmo por que é assim que conversa com sua própria solidão. Não! Isso não significa falta de amigos! Não! Quem não sabe ficar a sós com sua solidão não sabe ser ou ter amigos.
A magia e a solidão são as duas coisas que, cada uma a seu tempo, jamais podem faltar para um homem, pois só nestes momentos somos realmente quem somos, integralmente. Mostre-nos a solidão a plenitude ou o vazio ela nos traz para nós mesmos e nos acompanha em silencio como uma sábia e fiel amiga.
Faz meses que não ando por aquela rua que hoje é deserto, caminho mais, mas vou pra escola por outro caminho, pois sou apenas um garoto de quase catorze anos tentando não macular a lembrança de meu mundo mágico, tentando descobrir caminhos pra não deixar os desertos dos homens e dos mundos matarem a magia dentro de mim. Espero que em 1976 e por toda todo resto da vida eu e o mundo inteiro sejamos muito mais criança do que fui neste 75, onde descobri que  os homens constroem desertos e soterram a magia por acharem que isso é que é ser adulto.

(Estela de Menezes, em 05 e 06 de dezembro de 2012)

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